Se a vida,
na entrada deste milênio, é suficientemente complexa para ultrapassar as
amarras dos discursos estáveis, amplificando transitoriedade e instabilidade ao
real na mesma medida em que novas perspectivas se abrem para focar (ou mesmo
desfocar, se esta for a premissa política a ser sustentada) a percepção do
mundo por ângulos antes impensáveis, é porque a condição histórica que nos
rodeia assim o exige.
É urgente
que, diante de tantas incertezas a que somos submetidos por todos os lados, as
(antes) ditas certezas sejam revistas e observadas por cotejamento crítico,
visando formular modos mais precisos para lidar com a sensibilidade do sujeito
que está sendo permanentemente construído na contemporaneidade.
A Arte (e
não o entretenimento!) tem, diante deste panorama, um papel estratégico e
crucial. Cartografar o presente pelo crivo das dimensões artísticas pode servir
como um termômetro poderoso para dar vazão ou até dilatar processos de
reelaboração das leituras dos significados no presente em que nos tocou viver.
Conforme o
próprio real se relativiza, volatiliza, virtualiza ou mesmo se reconstrói por
dinâmicas alternativas em relação às normatizações da vida social convencionada,
as antenas artísticas posicionadas em regiões nevrálgicas podem captar desejos,
caminhos, novos horizontes para o dimensionamento daquilo que se pode
considerar concreto, objetivo, verdadeiro.
As
mestiçagens praticadas em todos os âmbitos da Arte atual (aquela com A
maiúsculo, que fique claro) são resultantes desta inquietude. Até mesmo as
premissas de base que, por séculos, foram consideradas canônicas nos discursos
a respeito da Arte, podem hoje ser relidas ou negadas por parâmetros de
sensibilidade até há pouco desconhecidos.
Não é raro
notar que um espectador incauto, diante desta vertigem, por vezes se pergunte
se “isso é arte?”, se “aquilo faz sentido?” ou se “há necessidade neste
gesto?”. Estas são perguntas simples que precisam de respostas complexas – e
quase nunca sustentadas pelo senso comum.
E deriva da
importância fulcral destas questões a objetiva necessidade de que não se tornem
aceitáveis quaisquer dissoluções – pode-se tudo, mas tudo não é qualquer coisa.
A responsabilidade do artista contemporâneo erige-se como fundamento ético
imprescindível.
E a Estética
(aquele ramo da Filosofia que se preocupa com a estesia, fenômeno que se opõe à
anestesia) oferece alguns instrumentos para mergulhar em cada projeto e, de
dentro de seus próprios paradigmas, extrair possíveis campos analíticos.
Evidentemente, Ética e Estética passam a ser dois territórios interrelacionais,
ou ainda interdependentes. E se é do interior de cada projeto que se pode
avaliar suas potencialidades, cada fenômeno há que produzir sua própria
concepção teórica.
Por esta
razão, o olhar sobre o processo passa a ter tanta importância quanto a
verificação de resultados. Ensaios abertos, workshops, cenas inacabadas,
encontros e palestras, compartilhamentos de diversos tipos tornam-se instrumentos
para a averiguação dos caminhos, das buscas e de suas respectivas abordagens
poéticas.
Longe das
retóricas vazias e demagógicas, será descabida, portanto, qualquer forma
pré-concebida de resposta que se articule a partir de uma instância exterior à
própria experiência que ali se propõe como Arte. Os mecanismos previamente
conhecidos e utilizados na formulação de discursos estáveis sobre o Belo
certamente derraparão na reinvenção da Beleza que ora se opera como ato
incontornável.
No
território do Teatro, particularmente, hibridações diversas, mais ou menos
estéreis, vêm sendo testadas com veemência, por artistas radicais que procuram
reencontrar um lugar crítico para o fazer teatral – para muito além das
fronteiras impositivas das formulações dramáticas, hoje já completamente
abarcadas pelas conservadoras correntes de sensibilidade que as desgastaram ao
limite.
Isso não se
significa que não haja mais espaço para o Drama. Mas seu lugar, isso é
evidente, está em xeque. Seja através das já quase centenárias formulações
brechtianas a respeito do épico na cena, seja por uma busca por radicais
desfronteirizações entre Arte e Vida (como resultante das proposições das
Vanguardas Europeias do início do Século XX), seja por qualquer outro
questionamento de teor Lírico (o vigor da Dança-Teatro, por exemplo, ou das
dramaturgias avessas a quaisquer esteios oriundos do Drama Moderno), o Teatro
Contemporâneo forja-se pela capacidade de ruptura em relação aos parâmetros
convencionais que, historicamente, estiveram em sua base retórica.
A
Dramaturgia Contemporânea constitui-se, assim, como um laboratório em que as
experimentações, em uma pletora de possibilidades formais, abre espaço para o
redimensionamento da escritura da cena. A novíssima dramaturgia brasileira, em
2015, conta com diversos centros de estudos e mesmo escolas formais para sua
produção e posterior dissecação de procedimentos.
Desta forma,
a Curadoria proposta para esta I Mostra de Artes Cênicas de Mogi das Cruzes,
realizada a convite da Associação Cultural Quântica Laboratório de Arte
Contemporânea, em seu projeto aprovado pelo ProAC, investiga formas do teatro
contemporâneo suficientemente inquietas e dispostas a instaurar novas
plataformas para o debate acerca do sentido atual de produzir Arte e, consequentemente,
do próprio fazer teatral.
Estão aqui
presentes manifestações singulares, suficientemente transitivas, capazes de
produzir, pelo estranhamento ou pelo deslocamento inesperado dos discursos,
exemplaridades do comprometimento de artistas atuais com a invenção de um outro
mundo, dilatado em relação ao que se imprime pela herança feita de
fronteirizações insustentáveis.
Dar conta da
diversidade impulsionada por tais experiências é uma missão somente possível no
plano da utopia. Aqui, focamos em exemplaridades que, recentemente, têm
tangenciado tais aspectos. Em especial, a presença de importantes nomes da
Dramaturgia Contemporânea Brasileira, como Roberto Alvim, Claudia Schapira,
dentre muitos, indica a vocação por tentar perceber outras maneiras de produzir
e emitir poesia, através do teatro.
Também
grupos consistentes e premiados como a Cia. Do Tijolo, o Núcleo Bartolomeu de
Depoimentos, o Club Noir, Las Nóias ou o Grupo 59 são indicadores de caminhos
experimentais e formulações inusitadas e mesmo deslocadas em relação à sintaxe
artística dominante.
No campo da
produção de Arte para a infância e para a adolescência, também foram escolhidos
projetos que tratem, tanto temática quanto formalmente, de proposições de
vivências que caminham no sentido de provocar este novo sujeito para o atrito
com o mundo que o envolve. Peças infantis que tenham a Morte como motivo de
origem ou que proponham a experiência lúdica do silêncio, do invisível, do
impensável, estão no centro de nossas preocupações.
Sobretudo, cenas
de fronteira são acionadas para refletir sobre a estabilidade e sobre a
instabilidade das cartografias que tradicionalmente margearam os limites
daquilo que se considera Teatro. Territórios partilhados entre Teatro e Dança,
Teatro e Performance, Teatro e Literatura, Teatro e Linguagens Midiáticas
diversas, Teatro e Artes Visuais (escultóricas, pictóricas ou no campo dos
multimeios eletrônicos) são privilegiados. Sobretudo, o questionamento da
arquitetura teatral convencional é matéria de base, na utilização de espaços
alternativos que resgatam ou reinventam o sentido público, e não privado, da
cena.
São, assim,
propostos 10 espetáculos (08 destinados ao público adulto e 02 às crianças e
adolescentes), mais 03 atividades formativas (como palestras, oficinas e
experimento com demonstração de trabalho cênico a partir da dramaturgia de
Bernard-Marie Koltés, sob orientação de Maria Isabel Setti), que têm como
missão despertar, na cidade de Mogi das Cruzes, um olhar voltado para a
inquietação própria ao sentido do fazer artístico da contemporaneidade.
I Mostra de
Artes Cênicas de Mogi das Cruzes
Associação
Cultural Quântica Laboratório de Arte Contemporânea
Curadoria de
Antônio Rogério Toscano
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