sexta-feira, 24 de abril de 2015

Conceito: Experimentação de Linguagens, Cenas de Fronteira e Nova Dramaturgia


Se a vida, na entrada deste milênio, é suficientemente complexa para ultrapassar as amarras dos discursos estáveis, amplificando transitoriedade e instabilidade ao real na mesma medida em que novas perspectivas se abrem para focar (ou mesmo desfocar, se esta for a premissa política a ser sustentada) a percepção do mundo por ângulos antes impensáveis, é porque a condição histórica que nos rodeia assim o exige.
É urgente que, diante de tantas incertezas a que somos submetidos por todos os lados, as (antes) ditas certezas sejam revistas e observadas por cotejamento crítico, visando formular modos mais precisos para lidar com a sensibilidade do sujeito que está sendo permanentemente construído na contemporaneidade.
A Arte (e não o entretenimento!) tem, diante deste panorama, um papel estratégico e crucial. Cartografar o presente pelo crivo das dimensões artísticas pode servir como um termômetro poderoso para dar vazão ou até dilatar processos de reelaboração das leituras dos significados no presente em que nos tocou viver.
Conforme o próprio real se relativiza, volatiliza, virtualiza ou mesmo se reconstrói por dinâmicas alternativas em relação às normatizações da vida social convencionada, as antenas artísticas posicionadas em regiões nevrálgicas podem captar desejos, caminhos, novos horizontes para o dimensionamento daquilo que se pode considerar concreto, objetivo, verdadeiro.
As mestiçagens praticadas em todos os âmbitos da Arte atual (aquela com A maiúsculo, que fique claro) são resultantes desta inquietude. Até mesmo as premissas de base que, por séculos, foram consideradas canônicas nos discursos a respeito da Arte, podem hoje ser relidas ou negadas por parâmetros de sensibilidade até há pouco desconhecidos.
Não é raro notar que um espectador incauto, diante desta vertigem, por vezes se pergunte se “isso é arte?”, se “aquilo faz sentido?” ou se “há necessidade neste gesto?”. Estas são perguntas simples que precisam de respostas complexas – e quase nunca sustentadas pelo senso comum.
E deriva da importância fulcral destas questões a objetiva necessidade de que não se tornem aceitáveis quaisquer dissoluções – pode-se tudo, mas tudo não é qualquer coisa. A responsabilidade do artista contemporâneo erige-se como fundamento ético imprescindível.
E a Estética (aquele ramo da Filosofia que se preocupa com a estesia, fenômeno que se opõe à anestesia) oferece alguns instrumentos para mergulhar em cada projeto e, de dentro de seus próprios paradigmas, extrair possíveis campos analíticos. Evidentemente, Ética e Estética passam a ser dois territórios interrelacionais, ou ainda interdependentes. E se é do interior de cada projeto que se pode avaliar suas potencialidades, cada fenômeno há que produzir sua própria concepção teórica.
Por esta razão, o olhar sobre o processo passa a ter tanta importância quanto a verificação de resultados. Ensaios abertos, workshops, cenas inacabadas, encontros e palestras, compartilhamentos de diversos tipos tornam-se instrumentos para a averiguação dos caminhos, das buscas e de suas respectivas abordagens poéticas.
Longe das retóricas vazias e demagógicas, será descabida, portanto, qualquer forma pré-concebida de resposta que se articule a partir de uma instância exterior à própria experiência que ali se propõe como Arte. Os mecanismos previamente conhecidos e utilizados na formulação de discursos estáveis sobre o Belo certamente derraparão na reinvenção da Beleza que ora se opera como ato incontornável.
No território do Teatro, particularmente, hibridações diversas, mais ou menos estéreis, vêm sendo testadas com veemência, por artistas radicais que procuram reencontrar um lugar crítico para o fazer teatral – para muito além das fronteiras impositivas das formulações dramáticas, hoje já completamente abarcadas pelas conservadoras correntes de sensibilidade que as desgastaram ao limite.
Isso não se significa que não haja mais espaço para o Drama. Mas seu lugar, isso é evidente, está em xeque. Seja através das já quase centenárias formulações brechtianas a respeito do épico na cena, seja por uma busca por radicais desfronteirizações entre Arte e Vida (como resultante das proposições das Vanguardas Europeias do início do Século XX), seja por qualquer outro questionamento de teor Lírico (o vigor da Dança-Teatro, por exemplo, ou das dramaturgias avessas a quaisquer esteios oriundos do Drama Moderno), o Teatro Contemporâneo forja-se pela capacidade de ruptura em relação aos parâmetros convencionais que, historicamente, estiveram em sua base retórica.
A Dramaturgia Contemporânea constitui-se, assim, como um laboratório em que as experimentações, em uma pletora de possibilidades formais, abre espaço para o redimensionamento da escritura da cena. A novíssima dramaturgia brasileira, em 2015, conta com diversos centros de estudos e mesmo escolas formais para sua produção e posterior dissecação de procedimentos.
Desta forma, a Curadoria proposta para esta I Mostra de Artes Cênicas de Mogi das Cruzes, realizada a convite da Associação Cultural Quântica Laboratório de Arte Contemporânea, em seu projeto aprovado pelo ProAC, investiga formas do teatro contemporâneo suficientemente inquietas e dispostas a instaurar novas plataformas para o debate acerca do sentido atual de produzir Arte e, consequentemente, do próprio fazer teatral.
Estão aqui presentes manifestações singulares, suficientemente transitivas, capazes de produzir, pelo estranhamento ou pelo deslocamento inesperado dos discursos, exemplaridades do comprometimento de artistas atuais com a invenção de um outro mundo, dilatado em relação ao que se imprime pela herança feita de fronteirizações insustentáveis.
Dar conta da diversidade impulsionada por tais experiências é uma missão somente possível no plano da utopia. Aqui, focamos em exemplaridades que, recentemente, têm tangenciado tais aspectos. Em especial, a presença de importantes nomes da Dramaturgia Contemporânea Brasileira, como Roberto Alvim, Claudia Schapira, dentre muitos, indica a vocação por tentar perceber outras maneiras de produzir e emitir poesia, através do teatro.
Também grupos consistentes e premiados como a Cia. Do Tijolo, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o Club Noir, Las Nóias ou o Grupo 59 são indicadores de caminhos experimentais e formulações inusitadas e mesmo deslocadas em relação à sintaxe artística dominante.
No campo da produção de Arte para a infância e para a adolescência, também foram escolhidos projetos que tratem, tanto temática quanto formalmente, de proposições de vivências que caminham no sentido de provocar este novo sujeito para o atrito com o mundo que o envolve. Peças infantis que tenham a Morte como motivo de origem ou que proponham a experiência lúdica do silêncio, do invisível, do impensável, estão no centro de nossas preocupações.
Sobretudo, cenas de fronteira são acionadas para refletir sobre a estabilidade e sobre a instabilidade das cartografias que tradicionalmente margearam os limites daquilo que se considera Teatro. Territórios partilhados entre Teatro e Dança, Teatro e Performance, Teatro e Literatura, Teatro e Linguagens Midiáticas diversas, Teatro e Artes Visuais (escultóricas, pictóricas ou no campo dos multimeios eletrônicos) são privilegiados. Sobretudo, o questionamento da arquitetura teatral convencional é matéria de base, na utilização de espaços alternativos que resgatam ou reinventam o sentido público, e não privado, da cena.
São, assim, propostos 10 espetáculos (08 destinados ao público adulto e 02 às crianças e adolescentes), mais 03 atividades formativas (como palestras, oficinas e experimento com demonstração de trabalho cênico a partir da dramaturgia de Bernard-Marie Koltés, sob orientação de Maria Isabel Setti), que têm como missão despertar, na cidade de Mogi das Cruzes, um olhar voltado para a inquietação própria ao sentido do fazer artístico da contemporaneidade.

I Mostra de Artes Cênicas de Mogi das Cruzes
Associação Cultural Quântica Laboratório de Arte Contemporânea
Curadoria de Antônio Rogério Toscano


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